O processo de constitucionalização do direito produziu, ao longo das últimas duas décadas, uma profunda rediscussão das bases dogmáticas dos ramos do direito. Isso se deu não apenas em função da inserção de inúmeros temas da vida no corpo da própria Constituição Federal, como também em virtude da reinterpretação dos institutos jurídicos em decorrência da supremacia formal e material da Constituição, que foi construída a partir de um paradigma democrático e que delegou aos direitos fundamentais um papel central na ordem jurídica.
Sobre os impactos desse processo no regime jurídico-administrativo, é correto afirmar que
- A) a supremacia do interesse público, a despeito de ter a estrutura de princípio jurídico, não pode ser ponderada com outros bens constitucionalmente tutelados.
- B) o interesse público deve ser identificado com a vontade do gestor público, como uma consequência do princípio democrático.
- C) a indisponibilidade do interesse público deve ser encarada como uma base do regime jurídico-administrativo e se confunde com a impossibilidade de se promover formas consensuais de resolução de conflitos administrativos.
- D) as garantias processuais dos indivíduos que litigam com a Administração devem ser relativizadas, quando a medida estiver fundada na supremacia do interesse público.
- E) para parte da doutrina, o princípio da legalidade deve ser interpretado como a necessidade de o administrador público estar vinculado ao Direito e este não se confunde com a lei em sentido formal.
Resposta:
A alternativa correta é letra E) para parte da doutrina, o princípio da legalidade deve ser interpretado como a necessidade de o administrador público estar vinculado ao Direito e este não se confunde com a lei em sentido formal.
Gabarito: letra E.
e) para parte da doutrina, o princípio da legalidade deve ser interpretado como a necessidade de o administrador público estar vinculado ao Direito e este não se confunde com a lei em sentido formal. – certa.
Realmente, a legalidade é mais ampla do que a lei em sentido formal.
Nessa linha, o entendimento de Ricardo Alexandre e João de Deus:
“A Lei 9.784/1999 (que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal), no art. 2.º, parágrafo único, I, prevê que a atuação administrativa deverá se dar em conformidade com a lei e o Direito. O referido dispositivo legal contempla a noção de princípio da juridicidade, segundo o qual a conduta administrativa está subordinada não só a uma lei ordinária ou complementar, mas também deve respeitar o chamado “bloco de legalidade” (Constituição Federal, Constituições Estaduais, tratados e convenções, decretos legislativos, princípios gerais de direito, Preâmbulo da Constituição etc.).
A distinção anterior tem levado alguns autores a distinguir o controle de legalidade do controle de legitimidade. Com efeito, o controle de legalidade se daria quando o ato administrativo fosse contrastado com uma lei ordinária ou uma lei complementar, enquanto o controle de legitimidade se daria quando o ato administrativo fosse contrastado com um princípio do ordenamento jurídico.
Dessa lição é possível inferir que a legalidade (em sentido estrito, como sinônimo de lei ordinária ou complementar) não é o único parâmetro a conformar a atuação administrativa, sendo certo que eventual comportamento administrativo que viole o bloco de legalidade também deverá resultar na invalidação dos atos praticados.” (ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado.1ª ed. São Paulo: Método, 2015. E-book. P. 179)
Portanto, alternativa correta.
Vejamos os erros das demais:
a) a supremacia do interesse público, a despeito de ter a estrutura de princípio jurídico, não pode ser ponderada com outros bens constitucionalmente tutelados. – errada.
Em verdade, apesar de ser um supra princípio do direito administrativo, a “supremacia do interesse público não desfruta de posição hierárquica privilegiada quando em conflito com os demais princípios. Por conseguinte, não se admite que aprioristicamente se assegure a prevalência do interesse defendido pela Administração Pública em detrimento dos particulares. Nesse contexto, há situações específicas em que o próprio ordenamento jurídico estabelece direitos e garantias fundamentais que protegem interesses individuais, inclusive em face da atuação do Estado.” (ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado.1ª ed. São Paulo: Método, 2015. E-book. P. 172)
Portanto, alternativa incorreta.
b) o interesse público deve ser identificado com a vontade do gestor público, como uma consequência do princípio democrático. – errada.
De acordo com o princípio da finalidade, “a administração não pode deixar de buscar a consecução do interesse público e a conservação do patrimônio público. Essa busca não deve depender das pessoas físicas ocupantes dos cargos que exercem em concreto as atividades administrativas.” (ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado.1ª ed. São Paulo: Método, 2015. E-book. P. 181)
Logo, é irrelevante a vontade do gestor público quanto à busca o interesse público, essa deverá sempre prevalecer.
c) a indisponibilidade do interesse público deve ser encarada como uma base do regime jurídico-administrativo e se confunde com a impossibilidade de se promover formas consensuais de resolução de conflitos administrativos. – errada.
Realmente, a indisponibilidade do interesse público deve ser encarada como uma base do regime jurídico-administrativo. No entanto, não se confunde com a impossibilidade de se promover formas consensuais de resolução de conflitos administrativos.
Vejamos:
“O Direito Administrativo, que outrora se satisfazia com o princípio da legalidade, hoje reclama ainda o respeito à legitimidade. É a necessidade de conferir maior legitimidade à atuação do Poder Público, no contexto de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que leva ao surgimento de novos mecanismos de participação popular na elaboração de normas e na tomada de decisões administrativas (ex.: consultas e audiências públicas), assim como o incremento de meios consensuais de atuação administrativa (exs.: Câmaras de Conciliação e Arbitragem da Administração, Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, Termo de Ajustamento de Gestão – TAG, parcerias público-privadas, acordos de leniência, compromissos, na forma do art. 26 da LINDB, acordo de não persecução cível na ação de improbidade administrativa, na forma do art. 17, § 1.º, da Lei 8.429/1992).
A participação popular no procedimento administrativo, nessa perspectiva do consensualismo, revela-se um importante instrumento de democratização da Administração Pública, pois permite uma melhor ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses dos particulares, identificando, com maior precisão, os problemas e as diferentes consequências possíveis da futura decisão.” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2021. E-book. P. 119)
d) as garantias processuais dos indivíduos que litigam com a Administração devem ser relativizadas, quando a medida estiver fundada na supremacia do interesse público. – errada.
Em verdade, de acordo com Ricardo Alexandre e João de Deus, “podemos concluir que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado fundamenta a atribuição ao Estado de prerrogativas nas suas relações com os particulares, mas o exercício desses privilégios somente será legítimo se respeitados os direitos e as garantias individuais. Já nos casos em que a Administração atua segundo um regime de direito privado, ela se despe da maioria de suas prerrogativas estatais e se equipara a um particular, não se podendo assumir que sua atuação busque o atendimento de interesses públicos primários, de modo a não ser legítima a invocação do supraprincípio ora estudado.” (ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado.1ª ed. São Paulo: Método, 2015. E-book. P. 172)
Logo, alternativa incorreta.
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