Existem diversas discussões doutrinárias acerca do conceito, noções e limites dos chamados atos administrativos e a clareza acerca de todos é essencial. O histórico da construção da teoria dos atos administrativos tem consolidada sua contemporaneidade ao surgimento do constitucionalismo, tendo em vista o surgimento de fatores muito específicos, estes que diferenciaram a concepção de atos administrativos quando comparados os sistemas de common law ao europeu continental. Assim sendo, para que a noção de ato administrativo seja estabelecida em uma ordem jurídica, é necessário que seja reconhecido um elemento específico, qual seja:
- A) Existência de, no mínimo, bipartição de poderes, tendo consequentemente um deles função executiva, mesmo que atípica.
- B) Regime jurídico-administrativo, ao qual a Administração Pública deve estar sujeita.
- C) O primado do Estado de Direito e, consequentemente, do princípio da legalidade estrita.
- D) A vinculação necessária de realização de serviços públicos por meio ou condicionados a atos administrativos.
- E) Diferenciação juridicamente clara de um ato jurídico oriundo de direito comum e de direito público.
Resposta:
A alternativa correta é letra B) Regime jurídico-administrativo, ao qual a Administração Pública deve estar sujeita.
Gabarito: letra B.
O enunciado da questão parece meio confuso, mas o que ele pede, em síntese, é o elemento necessário, dentro de um ordenamento jurídico, para que exista um ato administrativo como categoria jurídica própria (diverso de um ato jurídico em sentido amplo).
Sobre o tema, esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“Na realidade, a noção de ato administrativo só começou a ter sentido a partir do momento em que se tornou nítida a separação de funções, subordinando-se cada uma delas a regime jurídico próprio. Décio Carlos Ulla (1982:24) demonstra que a noção de ato administrativo é contemporânea ao constitucionalismo, à aparição do princípio da separação de poderes e à submissão da Administração Pública ao Direito (Estado de Direito); vale dizer que é produto de certa concepção ideológica; só existe nos países em que se reconhece a existência de um regime jurídico-administrativo, a que se sujeita a Administração Pública, diverso do regime de direito privado.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. P. 458)
Nessa linha, o elemento específico necessário para a caracterização de ato administrativo é o regime jurídico-administrativo, razão pela qual deve ser assinalada a alternativa B.
b) Regime jurídico-administrativo, ao qual a Administração Pública deve estar sujeita. – certa.
Destaquemos os erros das demais:
a) Existência de, no mínimo, bipartição de poderes, tendo consequentemente um deles função executiva, mesmo que atípica. – errada.
Conforme José dos Santos Carvalho Filho, três pontos são fundamentais para a caracterização do ato administrativo:
- que a vontade emane de agente da Administração Pública ou dotado de prerrogativas desta;
- seu conteúdo há de propiciar a produção de efeitos jurídicos com fim público;
- deve toda essa categoria de atos ser regida basicamente pelo direito público (regime jurídico-administrativo).
(CARVALHO FILHO; José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.E-book. P. 162)
Nota-se que para a caracterização do ato administrativo, a vontade para a prática do ato deve emanar de agente da Administração Pública ou dotado de prerrogativas desta, não tendo relação direta com forma como se dá a separação dos poderes.
Em outras palavras, independentemente da forma como se dá a separação de poderes em um Estado, o ato emanado de autoridade pública (ou de quem lhe faça as vezes), dirigido a um fim público, e submetido a regime jurídico administrativo será considerado ato administrativo.
c) O primado do Estado de Direito e, consequentemente, do princípio da legalidade estrita. – errada.
Conforme Marcelo Novelino, o Estado de direito é um Estado liberal de direito, que representa a institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes privilegiadas do Antigo Regime. Contra a ideia de um Estado de polícia, que tudo regula e que assume a busca da “felicidade dos súditos” como tarefa própria, no Estado Liberal há nítida distinção entre forças políticas e econômicas (Estado abstencionista).
As principais características do Estado de Direito são:
- os direitos fundamentais basicamente correspondem aos direitos da burguesia (liberdade e propriedade), sendo consagrados apenas de maneira formal e parcial para as classes inferiores;
- a intervenção da Administração Pública somente pode ocorrer dentro da lei (princípio da legalidade da Administração Pública);
- a limitação pelo Direito se estende ao soberano que, ao se transformar em “órgão do Estado”, também passa a se submeter ao império da lei (Estado limitado);
- o papel do Estado se limita à defesa da ordem e segurança públicas, sendo os domínios econômicos e sociais deixados à esfera da liberdade individual e de concorrência (Estado mínimo).
No âmbito do pós-positivismo, o “império da lei” (Estado de direito) cede espaço ao Estado constitucional, passando a ter na supremacia da Constituição sua característica nuclear. No Estado constitucional, a Constituição é a norma mais elevada, não apenas sob o ponto de vista formal, mas também substancial.
As principais características do Estado Constitucional Democrático são:
- consagração de institutos de democracia direta e indireta que introduzem o povo no governo do Estado, tais como plebiscito, referendo e iniciativa popular (CF, art. 14, I a III);
- preocupação com a efetividade e dimensão material dos direitos fundamentais, assegurados mediante a jurisdição constitucional;
- limitação do Poder Legislativo, não apenas no aspecto formal (modo de produção do direito), mas também no âmbito material, fiscalizando a compatibilidade do conteúdo das leis com os valores consagrados na Constituição;
- imposição constitucional não apenas de limites, mas também de deveres ao legislador;
- aplicação direta da Constituição com o reconhecimento definitivo de sua força normativa.
Nesse contexto, nota-se que o primado do Estado de Direito e, consequentemente, do princípio da legalidade estrita não é elemento fundamental para a noção de ato administrativo, uma vez que tal noção permanece presente no Estado Constitucional (Estado Democrático de Direito), em que há o primado da Constituição e da juridicidade (lei, como fonte do Direito Administrativo, deve ser considerada em seu sentido amplo para abranger as normas constitucionais, a legislação infraconstitucional, os regulamentos administrativos e os tratados internacionais).
- Fonte:
(NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Método, 2014. P. 77)
d) A vinculação necessária de realização de serviços públicos por meio ou condicionados a atos administrativos. – errada.
e) Diferenciação juridicamente clara de um ato jurídico oriundo de direito comum e de direito público. – errada.
As alternativas D e E configuram, na realidade, consequências da adoção de um regime jurídico-administrativo, não sendo causas da noção de ato administrativo como instituto próprio.
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