Texto 1 1 No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de se tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica? 2 Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são inter-relacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. (…) O leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor, etc. 3 Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira dinâmica; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a interação e a atualização das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente, elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas. (CÍCERO, Antônio. In: antoniocicero. Hogspot.com.br/ 2008_09_01archive.html (adaptado de uma entrevista). Em vários poemas de Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles obtém efeitos muito “sugestivos” extraídos de “relações paronomásicas” (§ 2) – o que se observa, por exemplo, nos seguintes versos:
Texto 1
1 No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece
haver um duplo fenômeno de proliferação dos
poetas e de diminuição da circulação da poesia (por
exemplo, no debate público e no mercado). Uma
das possíveis explicações para isso é a resistência
que a poesia tem de se tornar um produto mercantil,
ou seja, de se tornar objeto da cultura de massas.
Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e
laica, parece não haver mais uma função social
para o poeta, substituído por outros personagens. A
poesia, compreendida como a arte de criar poemas,
se tornou anacrônica?
2 Parece-me que a poesia escrita sempre será
– pelo menos em tempo previsível – coisa para
poucas pessoas. É que ela exige muito do seu
leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema
deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou
ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud.
Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser
relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas
coisas a serem descobertas num poema, e tudo
nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a
sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as
aliterações, as rimas, os assíndetos, as
associações icônicas etc. Todos os componentes
de um poema escrito podem (e devem) ser levados
em conta. Muitos deles são inter-relacionados. Tudo
isso deve ser comparado a outros poemas que o
leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser
familiarizado com os poemas canônicos. (…) O
leitor deve convocar e deixar que interajam uns com
os outros, até onde não puder mais, todos os
recursos de que dispõe: razão, intelecto,
experiência, cultura, emoção, sensibilidade,
sensualidade, intuição, senso de humor, etc.
3 Sem isso tudo, a leitura do poema não
compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser
olhado en passant; um romance, lido à maneira
dinâmica; uma música, ouvida distraidamente; um
filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um
poema, não. Nada mais entediante do que a leitura
desatenta de um poema. Quanto melhor ele for,
mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são
por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que
muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita
gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem
que é precisamente a exigência do poema – a
interação e a atualização das nossas faculdades –
que constitui a recompensa (incomparável) que ele
oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são
raridades. A função do poeta é fazer essas
raridades. Felizmente, elas são anacrônicas, porque
nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em
que passamos a maior parte das nossas vidas.
(CÍCERO, Antônio. In: antoniocicero. Hogspot.com.br/
2008_09_01archive.html (adaptado de uma entrevista).
Cecília Meireles obtém efeitos muito “sugestivos”
extraídos de “relações paronomásicas” (§ 2) – o que
se observa, por exemplo, nos seguintes versos:
- A)“Ou se tem chuva e não se tem sol / ou se tem sol e não se tem chuva!”
- B)“Com seu colar de coral / Carolina / corre por entre as colunas / da colina.”
- C)“No último andar é mais bonito: do último andar se vê o mar. / É lá que eu quero morar.”
- D)“Arabela / abria a janela. / Carolina / erguia a cortina. / E Maria / olhava e sorria: / „Bom dia!‟”
- E)“Esta menina / tão pequenina / quer ser bailarina.”
Resposta:
A alternativa correta é B)
A Poesia como Resistência ao Utilitarismo
O texto de Antônio Cícero apresenta uma reflexão profunda sobre o lugar da poesia na sociedade contemporânea, marcada pelo consumo e pela cultura de massas. A poesia, como arte que exige um engajamento singular do leitor, parece ocupar um espaço cada vez mais restrito, quase anacrônico, diante da velocidade e do pragmatismo que caracterizam a vida moderna. No entanto, é justamente essa resistência em se tornar um produto mercantil que revela a força e a singularidade da poesia.
Cícero destaca que a poesia escrita demanda uma leitura atenta, minuciosa, capaz de explorar suas múltiplas camadas de sentido. Ao contrário de outras formas de arte, que podem ser apreciadas de maneira mais superficial, o poema exige uma imersão total do leitor, convocando suas faculdades intelectuais, emocionais e sensoriais. Essa exigência, por um lado, afasta muitos leitores, mas, por outro, oferece uma recompensa única: a experiência de uma temporalidade distinta, que rompe com a lógica utilitária do cotidiano.
O exemplo de Cecília Meireles em Ou isto ou aquilo ilustra como a poesia pode criar efeitos sugestivos por meio de recursos como as relações paronomásicas, como no verso "Com seu colar de coral / Carolina / corre por entre as colunas / da colina". A sonoridade e a repetição de fonemas constroem um ritmo e uma musicalidade que transcendem o significado literal das palavras, convidando o leitor a uma experiência sensorial e lúdica.
Assim, a poesia, longe de ser um artefato obsoleto, mantém sua relevância como espaço de resistência e transcendência. Ela desafia a lógica do consumo imediato e oferece uma alternativa à temporalidade acelerada da vida moderna. Os bons poemas, como raridades que são, nos permitem experimentar uma dimensão do tempo e da existência que o utilitarismo não consegue capturar. Nesse sentido, a poesia não só sobrevive, mas se afirma como uma forma de arte essencial, capaz de nos conectar com o que há de mais profundo e humano em nós.
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