(…) Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o Sem-Pernas pelas ruas. Entraram numa igreja da Piedade, gostavam de ver as coisas de ouro, mesmo era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse. Mas não havia nenhuma senhora na igreja àquela hora. Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo. — É Pirulito… — disse Sem-Pernas. Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros: — Que adianta? Sem-Pernas olhou: — Não dá de comer… — Um dia vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto. Sem-Pernas disse: — A bondade não basta. Completou: — Só o ódio… Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo. Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça. Pedro Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas. — Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta. A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de ódio do Sem-Pernas estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia nenhuma. Ouvia era a voz de João de Adão, o doqueiro, a voz de seu pai morrendo na luta. Jorge Amado, Capitães da Areia.Comparando-se as características de Capitães da Areia (1937), bastante visíveis no excerto, às características mais notórias de Macunaíma (1928), pode-se identificar corretamente uma transformação ocorrida na transição do primeiro Modernismo, da década de 1920, ao qual pertence Macunaíma, para a segunda fase modernista, posterior a 1930, período em que surge Capitães da Areia. Nessa transição, deu-se a passagem de uma
(…) Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o
Sem-Pernas pelas ruas. Entraram numa igreja da Piedade,
gostavam de ver as coisas de ouro, mesmo era fácil bater uma
bolsa de uma senhora que rezasse. Mas não havia nenhuma
senhora na igreja àquela hora. Somente um grupo de meninos
pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo.
— É Pirulito… — disse Sem-Pernas.
Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros:
— Que adianta?
Sem-Pernas olhou:
— Não dá de comer…
— Um dia vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto.
Sem-Pernas disse:
— A bondade não basta.
Completou:
— Só o ódio…
Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade
extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo.
Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça. Pedro
Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas.
— Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.
A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja.
A voz de ódio
do Sem-Pernas estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia
nenhuma. Ouvia era a voz de João de Adão, o doqueiro, a voz
de seu pai morrendo na luta.
Jorge Amado, Capitães da Areia.
Comparando-se as características de Capitães da Areia
(1937), bastante visíveis no excerto, às características
mais notórias de Macunaíma (1928), pode-se identificar
corretamente uma transformação ocorrida na transição
do primeiro Modernismo, da década de 1920, ao qual
pertence Macunaíma, para a segunda fase modernista,
posterior a 1930, período em que surge Capitães da
Areia. Nessa transição, deu-se a passagem de uma
- A)tendência à abstração e à generalidade, para uma atenção a realidades bem determinadas.
- B)predominância da influência portuguesa, para o domínio da influência francesa.
- C)visão ufanista e patriótica, para uma visão pessimista do Brasil.
- D)predileção pelos temas rurais, para a observação prioritária do mundo urbano.
- E)concepção da literatura como jogo e divertimento, para uma concepção da literatura como arte.
Resposta:
A alternativa correta é A)
O excerto de Capitães da Areia, de Jorge Amado, revela uma narrativa profundamente enraizada na realidade social, retratando a vida marginalizada de meninos abandonados em Salvador. A cena na igreja, onde Pedro Bala e Sem-Pernas observam Pirulito ensinar catecismo a crianças pobres, ilustra a tensão entre bondade, ódio e luta como formas de enfrentamento das desigualdades. Essa abordagem direta e concreta contrasta com o caráter mais simbólico e universalizante de Macunaíma, de Mário de Andrade, obra que, embora critique aspectos da cultura brasileira, o faz por meio de uma linguagem alegórica e um protagonista que encarna traços nacionais de forma generalizada.
Essa diferença evidencia a transformação ocorrida na transição do primeiro Modernismo (década de 1920) para a segunda fase (pós-1930). Enquanto Macunaíma se caracteriza pela abstração e pela busca de uma identidade nacional ampla, Capitães da Areia se volta para realidades específicas, como a pobreza urbana e a infância abandonada, marcando uma mudança de foco do universal para o particular. Assim, a alternativa correta é a A), que aponta a passagem de uma "tendência à abstração e à generalidade, para uma atenção a realidades bem determinadas".
As demais alternativas não correspondem à transformação observada. A influência literária (B) e a temática rural/urbana (D) não são centrais nessa comparação. A visão ufanista (C) já era questionada no primeiro Modernismo, e a concepção da literatura (E) como "jogo" ou "arte engajada" não define o contraste entre as obras.
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